Borboletas no estômago

Marina Yukawa
2 min readFeb 14, 2022

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Li em um dos meus velhos diários que há vinte anos exatamente eu comi um pedaço do seu bolo de aniversário. Era de chocolate. Éramos jovens, quase crianças. Foi o último registro que fiz no diário. Foi a última vez que nos vimos.

O que me sobraria para registrar, é o que me pergunto agora. Todo ímpeto que eu tive de voltar a documentar, mesmo que toscamente, meus acontecimentos, foi arrefecido como a chama que, pequenina e trêmula, se apaga antes de queimar. Não esquenta a pele, não preenche o coração. Larguei cadernos quase vazios para trás.

Passei a guardar papeizinhos soltos, perdidos. Ingressos de teatro, cinema; trechos de livros anotados em folhas sem pauta; arrancando pedaços de agendas com alguma coisa escrita que os olhos não fixam, a memória não guarda, mas que preciso porque acredito que preciso. Um telefone antigo e sem nome, uma lista de cinco ou seis itens para comprar no mercado, os números do bilhete de loteria não premiado.

Uma vida descontinuada dentro de gavetas bagunçadas; no meio de livros, usados de marca página e que depois da história terminada eu esqueço; embaixo de coisinhas que não impedem que eles voem e se percam quando entra um vento mais forte pelas janelas da casa, embora eu acredite que impeçam. São ilusões, não existem, mas que eu preciso, necessito com urgência porque continuo acreditando que preciso.

Li em um dos meus velhos diários, prestes a me desfazer de todos eles com fogo, que há vinte anos exatamente eu comi um pedaço do seu bolo de aniversário. Na minha letra ainda caprichada da juventude, eu escrevi que sorríamos, e eu posso me lembrar mesmo da sensação de abrir os lábios e soltar meus dentes em um riso feliz. Como se meus músculos ainda se lembrassem; como se desejassem voltar a sorrir.

Eu não me lembro da sua imagem diante de mim, sorrindo. Demorei vinte anos para ver, ou melhor: para me dar conta de que não vi. Era o seu aniversário. Era o dia feliz; dia do seu feliz aniversário. Comemos bolo de chocolate e ainda éramos jovens, quase crianças. Mas eu não te vi. Eu não te vi e você foi embora logo depois. Levou-me os cadernos, as canetas. Voa, voa livre e imortal nos pequenos papeis que continuo rabiscando, arrancando de suas páginas e que tento guardar, mas somem soltos.

Te guardo. Te vejo e te guardo dentro de mim. E você voa, voa, voa.

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